Tudo começou nas viagens de ônibus semanais. Cedo. Gente, muita gente. Aliás, até as sardinhas protestariam contra viagens de ônibus como aquelas: cartazes, comissões e palavras de ordem. Mas, aparentemente, as sardinhas mobilizam-se com mais facilidade do que as pessoas; nenhum protesto, salvo pequenos comentários paralelos. De qualquer maneira, na terceira semana, o ônibus já não estava mais tão cheio. Creio que foi nesse dia que ele a percebeu: clara, tímida e sonolenta. Tirando a sonolência, definitivamente, ela tinha um diferencial.
Quando digo, clara, não quero dizer que ela fosse algo do tipo autêntico ou coisa que o valha. Ela era branca mesmo. Talvez não fosse tanto, mas seus cabelos (também muito claros) realçavam sua aparência. Bom, fato é que a viagem era longa o suficiente para que ele se acostumasse com aquela menina que lhe causara um estranhamento inicial. Mas, claro, foi um acostumar-se gradual: não bastasse o diferencial, ela vestia-se como se estivesse em casa, à vontade, com uma leve displicência. No fim, isso dava um toque de simpatia à figura, algo beirando à elegância, ou melhor, ao charme.
Na semana seguinte, ele a reparou de novo. E não por acaso. Descobriu que eles pegavam o ônibus na mesma parada. Ela apenas chegava em cima da hora, quase junto com a condução. Aliás, neste dia ela teve, inclusive, que correr para alcança-lo. Ele, um típico virginiano (e essa informação é importante que guardemos), achou curioso. Mas não chegou a estranhar; combinava com a charmosa displicência do visual. Como na semana anterior, ela estava à vontade, mas, ainda assim, um pouco mais "arrumada". Observa-la foi ficando mais interessante, e até mais excitante. A simpatia que via nela já se transformara em uma leve sensualidade. Até que, em determinada altura do trajeto, seus olhares se cruzaram; a cena durou poucos milésimos, mas o suficiente para que ambos desviassem o olhar com um pequeno constrangimento. Novamente, ele olhou na direção dela: novo contato. Pronto: agora havia uma ligação. Na mesma viagem, nasceu a paquera.
Como bom observador (lembremos que ele era virginiano), nosso camarada percebeu que ela cursava Engenharia de Alimentos. Estava escrito em sua pasta. Além disso, quando chegavam no campus universitário, ele a via entrar em um Centro Não-Sei-o-Quê de Engenharia de Alimentos. Isso mesmo, os dois iam para o mesmo lugar. Não preciso dizer que a idéia de que os dois pegavam o mesmo ônibus no mesmo local e ainda desciam juntos lhe pareceu divertidíssima. Imaginou como seria contar isso anos depois para os seus netos. Mas não nos apressemos. Havia muitos passos a serem dados até esse nível, e nosso amigo era metódico (virginiano!).
A esta altura dos acontecimentos, ambos já tinham se traído: os dois estavam interessados. Porém, talvez devido a alguma regra social infame, ele se sentiu na obrigação de dar o próximo passo. Mas não o fez. "Na próxima parada, eu falo com ela". "Já sei! Vou esperar que aquela senhora saia do seu lado. Então, eu vou e falo com ela." As paradas passavam e as senhoras saíam... mas ele não falava. Isso se repetiu por, pelo menos, mais duas semanas. No final do trajeto, ele pensava: "Sou um bunda mole!" Soltava um suspiro de resignação e ia tomar um café no bar antes que a aula começasse.
Em determinado momento desse relacionamento (platônico?), ele lembrou do ditado: "A melhor maneira de conhecer alguém é mexer no seu lixo." Sorriu e imaginou o que encontraria na lixeira de uma engenheira de alimentos. Cascas de banana, canetas e filtros de café... achou também que não seria difícil descobrir onde ela morava: ele era obstinado e sabia onde ela pegava o ônibus. Mais algumas semanas, e teria um verdadeiro dossiê sobre aquela menina que há algum tempo era uma ilustre desconhecida para ele. Mas, naquele dia foi diferente. Seus olhares os levaram a um beco sem saída, alguém teria de dizer algo. Não era possível que duas pessoas se olhassem tanto e não trocassem nenhuma palavra! Ele pensou consigo: "Chegamos ao limite... na semana que vem, eu falo com ela!"
Na semana seguinte, enquanto esperava o ônibus, pensava em uma maneira interessante de aborda-la. De preferência algum assunto que não fosse da linha "que tempo maluco, não?" No entanto, ele começou a ficar nervoso: ela não aparecia nunca! O ônibus já estava chegando à parada, e nada da engenheira de alimentos aparecer. A dúvida pairava em sua mente obscura: "Vou ou espero?" Pensou que ela poderia ter se organizado melhor dessa vez, afinal, seria o dia de sua primeira conversa.
O ônibus parou, as portas se abriram. Ele, corroído pela dúvida e pela aflição, foi o último a entrar... mas entrou. Entrou e falou baixinho, para si mesmo: "Sou um bunda mole!" Dito isso, ergueu a cabeça e viu a menina na metade da quadra, vindo em direção à parada. O ônibus arrancou. Ele ainda cogitou simular um ataque epilético para que ela tivesse tempo de alcançar o coletivo... mas não. "Definitivamente, sou um bunda mole", pensou. "Mas de semana que vem não passa!"
Na outra semana, ele esperou até o último instante. Diria para ela algo espirituoso, algo do tipo: "Perdeste o ônibus semana passada, heim..." Mas ela não apareceu, e ele entrou no ônibus. Pensou que ela poderia estar pegando o ônibus anterior ou o ônibus seguinte ao que sempre pegavam. Refletiu. Definitivamente, ela estava pegando o ônibus seguinte, era um tanto desorganizada para pegar o ônibus anterior. Nas semanas consecutivas, eles não voltaram a se ver. Ele, claro, começou a tecer considerações que diminuíssem seu sentimento de "bunda-molismo": "Ela andava muito à vontade e chegava em cima da hora para pegar o ônibus. Um pouquinho desorganizada. Nunca teria dado certo..."
Ela, uma engenheira de alimentos; ele, um virginiano...