domingo, 30 de novembro de 2008



Semana cheia e cansativa. Tudo o que queria era ver, pela quadragésima terceira vez, "Morrendo e Aprendendo".

Foi à locadora de sempre e, como sempre, ficou olhando inúmeros filmes, mas sempre com a certeza da escolha já feita. Depois de alguns minutos, decidiu pegar o filme previamente escolhido. Não achou.

Foi ao balcão.

- Por favor, onde está o "Morrendo e Aprendendo"?

Após uma rápida consulta ao computador, o atendente respondeu:

- Hum… locado.

Não pôde esconder a surpresa. Já havia pego "Morrendo e Aprendendo" cinqüenta e sete vezes naquela mesma locadora. Ninguém, além dele, jamais havia locado este filme. Aliás, quem se interessaria por esse filme? As pessoas mal o conheciam!

Atônito, foi até a seção de filmes europeus. Sem pensar efetivamente nos filmes, olhava-os, um após o outro. Em alguns minutos, chegou à conclusão:

- Alma gêmea! Se ela existe, essa é a sua definição: a pessoa que pega o mesmo e improvável filme que tu pegarias, pela sexagésima nona vez, em uma noite de sexta!

De repente, olhou em direção à seção de romances e pensou que deveria descobrir quem era a pessoa que locou o filme. A todo custo. Sua vida dependia disso!

Deslizando através das prateleiras, foi à seção policial e, de lá, ficou a tramar o plano perfeito para descobrir o nome e, se possível, o endereço da sua provável cara-metade - aquela com quem assistiria filmes para o resto de suas vidas. Cogitou inventar pretextos que iam desde a necessidade de ver o filme por questões de trabalho até imperativos religiosos. Obviamente, todos pretextos furados.

Em uma manobra ousada, para tomar coragem, dirigiu-se à seção dos filmes de guerra. Olhou para os lados. Intrépido, investiu contra o balcão. Pura e simplesmente, falou:

- Preciso saber quem locou "Morrendo e Aprendendo". É possível?

- Claro. Respondeu o atendente.

Fora muito fácil. Devia estar enganado. Não é assim que nossa alma gêmea chega até nós. Agradeceu, virou as costas e saiu da locadora. Foi ao cinema. Ainda tinha tempo para pegar a sessão das 20h.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Quando Olívio chorou



“O ex-prefeito da Capital chegou às lágrimas e disse que a esquerda precisa

construir melhor no primeiro e no segundo turnos sua articulação.

‘Precisamos nos preparar para daqui a dois anos (…) com uma

candidatura do nosso campo, para enfrentar a centro-direita’”.

Correio do Povo, 27.10.08, p. 3.


Ontem, as urnas portoalegrenses confirmaram a tendência das pesquisas e do resultado do primeiro turno. A derrota petista, por mais de 17% dos votos, confirma o “baque” de quatro anos atrás e mostra alguns elementos/dilemas que, creio, se atravessam na caminhada do Partido.

Pensando do ponto de vista institucional, alguns fatores pesaram para o resultado. Em primeiro lugar, o progressivo isolamento petista que vem se desenhando nos últimos pleitos aqui no estado. Acredito que este isolamento seja fruto tanto da própria dinâmica do Partido no Rio Grande do Sul, relativamente inflexível a parcerias, quanto à falta de flexibilidade dos possíveis aliados. No entanto, neste ano, houve também a excessiva flexibilidade do PT nacional: o arranjo de alianças que sustenta o Governo Lula engessou o PT nas diversas realidades regionais, e creio que a entrada tímida de Lula na campanha de Rosário aos 45 minutos do segundo tempo em Porto Alegre seja um exemplo claro aos nossos olhos, pois o objetivo do presidente era não desagradar o aliado PMDB-nacional.

Outro ponto é a já tradicional fragmentação das esquerdas, não à toa tratadas geralmente no plural. A tática de “cada um no seu quadrado” foi visível nesta eleição. Resultado: o que é considerado por muitos sinal de fortaleza ideológica mais uma vez abre as portas ao fortalecimento conservador.

Mas creio que outro fator seja importante: a forte coalizão montada pela candidatura Fogaça. A troca para o PMDB ainda durante a administração atual se mostrou correta do ponto de vista do cálculo político. Fogaça disputou o pleito do alto de uma forte máquina partidária, ao mesmo tempo em que contava com a permanência na Prefeitura.

Além disso, dois apoios foram de extrema importância para o candidato peemdebista: o PTB e o PDT. Ambos proporcionaram o reforço de estruturas partidárias fortes, levando a candidatura Fogaça para as periferias da cidade. Fogaça ganhou uma "cara mais popular" sem perder o bom e velho voto antipetista de grupos das chamadas classes média-alta e alta, e mesmo o antipetismo mais ou menos generalizado em Porto Alegre (embora este me pareça cada vez menos sinônimo de posição ideológica consciente). Ao apoio do PDT, soma-se um fator importante: a mística do Brizola, cuja força ficou clara na eleição de sua desconhecida neta com uma considerável votação.

Voltando ao PT, creio que esta segunda derrota consecutiva em uma cidade que foi (e é) fortemente simbólica na história da estrela vermelha demonstra um dilema para o Partido. O pessoal da ciência política costuma dizer que um partido permanece por muito tempo ligado (e, portanto, influenciado) pelas condições de sua origem. Pensando em termos de evolução histórica, concordo com isso.

Assim, creio que o grande desafio do Partido dos Trabalhadores seja optar entre um desenvolvimento que absorva e trabalhe as mudanças, mantendo sua história à esquerda ou um caminho no qual o pragmatismo e o clientelismo sejam definitivamente institucionalizados. Embora essas duas “vias” estejam presentes no Partido há tempos (e, agora, não saberia dizer desde quando), ainda há – creio eu – tempo de tomar uma decisão e acertar os rumos. Desafio do PT para a próxima eleição e para além.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

E agora, PT?

..."look at all the lonely people"...


Voltando do Campus do Mato nesta noite, me deparei com um comício petista. Fui tomado por uma onda de nostalgia e entrei na maré vermelha. Lá dentro, vi que a maré não era tão densa, e nem o vermelho, tão vivo.
Não ia a comícios do PT desde 2002. Nesses seis anos, mudamos muito. Mudou o PT. Mudei eu.
Das minhas mudanças, muitas são (para mim obviamente) motivos de orgulho. Das mudanças do meu ex-Partido, não posso dizer o mesmo.
Sempre costumei dizer que não era petista, mas sim que "estava petista". No entanto, a verdade é que por muito tempo considerei a estrela vermelha uma razão de esperança (não a única, claro).

Não nego a importância do Partido. Acredito que a construção de uma história de duas décadas não se desfaz em seis anos. Ainda vejo gente boa ligada ao PT. E vejo também os "braços" do Partido em alguns movimentos sociais. Afinal, um partido é sempre maior que sua sigla.
Porém, o que me dói é ver essas mesmas pessoas e "braços" cada vez mais engessados em sua subordinação a uma cúpula partidária cada vez mais distante do ideal de transformação que impulsionou sua própria formação no passado.
Certamente as minhas mudanças nos últimos anos contribuíram para esse sentimento estranho de hoje, quando me deparei com uma maré rasa e um vermelho meio desbotado. Contudo, não creio que os partidos sejam todos iguais, nem penso que a luta por transformações pela via da política institucional deva ser abandonada. Entre pragmatismos necessários e limites asfixiantes, ela deve ser mantida.
Mas é um tanto doloroso ver pessoas boas ligadas ao PT se debatendo com esse paradoxo.

O Partido dos Trabalhadores perdeu terreno na minha cidade. E não sei se conseguirá reconquistá-lo sem se descaracterizar ainda mais, pois a minha Porto Alegre não parece ser nem sombra da Porto Alegre mais politizada das décadas passadas.

Não fiquei dez minutos no comício. Saí com um aperto na garganta e um mal-estar difícil de explicar.

terça-feira, 11 de março de 2008

A queda do Império Romano

Sala de aula. 6ª série.
Após demonstrar - rápida e bisonhamente -, em um desenho, a fragmentação do Império Romano em decorrência das invasões bárbaras, o professor interrompe a explicação para atender a um aluno que levanta a mão para questionar a figura:

A - "Professor!"
P - "Sim."
A - "Isso é vasectomia?"
P - "Hum... não, não... vasectomia é outra coisa, vocês vão ver..."


sábado, 8 de março de 2008

Cidades Invisíveis

O senhor tem saudades de Itabira ainda hoje?
Tenho uma profunda saudade e digo mesmo:
no fundo, continuo morando em Itabira, através de minhas raízes
e, sobretudo, através dos meus pais e dos meus irmãos,
todos nascidos lá e todas já falecidos.


Estava lendo um livro "meio-reportagem-meio-biografia" do Drummond (ou sobre o Drummond?). Nele, encontrei uma entrevista feita com o poeta pelo jornalista Geneton Moraes Neto poucos dias antes da morte do poeta. É realmente uma entrevista interessante. Na verdade, infinitamente mais interessante pelo entrevistado do que pelas perguntas do entrevistador... mas, enfim...

Eu, que já gostava do mineiro, estou cada vez mais encantado...

Lá pelas tantas, dei de cara com a pergunta e a resposta que copiei acima. A sensibilidade com que Drummond explicou sua relação com Itabira me remeteu à minha relação com Dom Pedrito... sempre que releio o post sobre minha última viagem à "cidadezinha", escrito há mais de dois anos, quase sinto o mesmo que senti na época...

Com a resposta do Drummond e a minha relação com Dom Pedrito, me dei conta de que podemos ter várias
"cidadanias", assim como temos várias identidades... sou porto-alegrense [de onde - espero - não arredo o pé], mas também "sou" de Dom Pedrito... sou pedritense através do meu avô, através de algumas de minhas raízes...

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

"Um Pequeno Poema"

"Assustado,
tinha guardado na mala
um poema
e um conhaque
para a noite em que a felicidade
viesse para ficar ."

Antônio Navarro

Poema tirado de um ônibus em Porto Alegre
em uma noite de 2003...

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Pessimistas de todo o mundo, uni-vos!

... mas já aviso: não vai dar certo...
Sentado em um banco na rodoviária de Dom Pedrito, esperando o ônibus para a volta, olhava as pessoas, os cachorros e a chuva que se armava no céu. Então, senti como se estivesse na extremidade de uma ponte que cruzava dezenas de anos e encontrava, no outro lado, o meu avô, no mesmo lugar e com aproximadamente a mesma idade que eu. O ônibus chegou antes da chuva. Comprei um doce de amendoim, peguei minha mochila e embarquei. De volta.



Data original: fevereiro de 2006.

11 coisas para se fazer em Dom Pedrito

1. Pensar na vida;
2. Comer um cachorro-quente e/ou tomar um café;
3. Conhecer o Museu Paulo Firpo;
4. Encontrar um cinema e assistir a um filme nele;
5. Conhecer gente nova;
6. Ler um livro;
7. Ver como os pedritenses falam de Dom Pedrito;
8. Conhecer um lugar e/ou um evento bacana;
9. Comprar um exemplar de um jornal local;
10. Ver uma vaca;
11 Conhecer a cidade de novo e me sentir mais perto das origens.


Data original: fevereiro de 2006...

Havia pensado muito antes de escolher o lugar para o encontro. Foi difícil, mas acabou descobrindo um restaurante bem aconchegante em um bairro perto do centro da cidade. Nem pequeno, nem grande... perfeito. Não queria um clima formal, mas também não queria que ela pensasse que estava forçando algo, digamos, mais "intimista". Seria a segunda vez que saíam, e ele tinha muitas dúvidas quanto às intenções dela; almoçaram quatro dias antes, mas depois tiveram um desencontro no cinema, desencontro que ele não sabia se fora obra do acaso ou da vontade dela.
Esperava por ela sentado em uma mesa em frente à janela. Para passar o tempo, fiscalizava o cardápio. Filés, sopas... e ela já estava dez minutos atrasada. Pensou em pedir um café enquanto esperava, mas ficou com medo de que ela não achasse cortês de sua parte. Cantarolou baixinho, e seus dedos acompanharam o ritmo, batendo sobre a mesa. Olhou em direção à porta no exato instante em que ela a cruzou. Estava linda. O vestido, muito simples, lhe dava um ar casual, e o cabelo lhe caía na testa de uma forma extremamente agradável.
Sorrindo, ele se levantou beijou-lhe a face e, com um movimento displicente e amável, indicou a cadeira para que ela se sentasse.
- Tudo bom? Desculpa o atraso.
- Tudo bem, não tem problema. As coisas vão bem, e contigo?
- Tudo ótimo.
Enquanto os olhos dela percorriam o cardápio, ele a observava. Pensou em sugerir algo, mas não sabia muito do seu gosto; preferiu não arriscar.
- Posso deixar minha bolsa junto com a tua pasta?
- Claro, por favor.
Ficou contente com a atitude dela: demonstrava intimidade. O jantar correu sem problemas. A conversa fora divertida e despretensiosa. Música, livros, gostos. Ela comera um filé à parmegiana; ele, um filé ao molho madeira. Ainda em dúvida sobre a situação dos dois, ele aproveitou um rápido silêncio para perguntar:
- Tu gostou do almoço de terça?
- Claro, foi muito bacana...
- E tu gostou de me deixar plantado no cinema na quarta?!
- Ah?! Mas...
- Então, cala a boca e gosta disso!!!
Em uma explosão, mais rápido do que pudesse pensar, ele se levantou, tirou a arma da pasta e deu um tiro na cabeça dela. Ante a consternação que tomou conta do ambiente, ainda descarregou todo o revolver no corpo já caído ao chão.
Ficou ali, olhando para o sangue por alguns segundos até que se acalmasse. Depois, saiu assobiando o Bolero de Ravel...

Achadas pegadas de 20 mil anos

Sidney - Centenas de pegadas de um grupo primitivo foram descobertas nas proximidades dos lagos Willandra, na Austrália, região considerada patrimônio mundial pela Unesco. Preservadas sob camadas de solo, por cerca de 20 mil anos, as pegadas mostram o que seriam a animada caminhada de adultos [sic], adolescentes e crianças ao longo de um riacho, provavelmente seguindo a trilha de animais. A datação das pegadas fossilizadas foi anunciada em estudo publicado ontem no Jornal da Evolução Humana.
A descoberta ocorreu em agosto de 2003, no leito seco de um antigo lago por alunos nativos. Estima-se que o grupo tivesse de oito a dez pessoas. As pegadas mais curiosas são as que indicam alguém com uma só perna.
Correio do Povo, 23.12.2005.


***

No inverno de 2004, um professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em um momento de humor espirituoso, comentou que o verdadeiro motivo pelo qual os homens caçavam era a diversão.



Podemos, então, imaginar um grupo primitivo de oito a dez homens, há 20 mil anos atrás, chegando embriagados quase ao nascer do dia, após uma noite inteira de diversão. Talvez até estejam entoando algumas canções... na boca, o hálito forte de determinada bebida fermentada; nas mãos, apenas um sagüi.
A penúria do resultado da caça aliada ao hálito forte de uma determinada bebida fermentada e a um surto de fúria feminina (na época, ainda incompreendido por nossos antepassados) desencadeou o inevitável.
Em um tempo em que não havia embalagens plásticas com bolinhas para serem estouradas, os ânimos acirravam-se com mais facilidade.

... e a briga fora feia...

Não devemos ser duros no julgamento dos tempos passados. As relações humanas (primitivas?) eram tão ou mais complicadas para eles do que o são, hoje, para nós. Definitivamente, atualmente temos mais informações do que eles. Mesmo assim, para alguns de nossos contemporâneos, certas coisas (como o surto de fúria feminina, por exemplo) permanecem tão incompreensíveis quanto naquele tempo.

Quando os representantes do frágil segmento masculino estavam prestes a chegar à curva do riacho, um dos mais jovens e impulsivos viu que uma das mulheres o observava. Então, fez o que, para eles, era considerado um grave insulto aos desafetos: andou em uma perna só...

... a briga fora mesmo feia...
Tudo começou nas viagens de ônibus semanais. Cedo. Gente, muita gente. Aliás, até as sardinhas protestariam contra viagens de ônibus como aquelas: cartazes, comissões e palavras de ordem. Mas, aparentemente, as sardinhas mobilizam-se com mais facilidade do que as pessoas; nenhum protesto, salvo pequenos comentários paralelos. De qualquer maneira, na terceira semana, o ônibus já não estava mais tão cheio. Creio que foi nesse dia que ele a percebeu: clara, tímida e sonolenta. Tirando a sonolência, definitivamente, ela tinha um diferencial.
Quando digo, clara, não quero dizer que ela fosse algo do tipo autêntico ou coisa que o valha. Ela era branca mesmo. Talvez não fosse tanto, mas seus cabelos (também muito claros) realçavam sua aparência. Bom, fato é que a viagem era longa o suficiente para que ele se acostumasse com aquela menina que lhe causara um estranhamento inicial. Mas, claro, foi um acostumar-se gradual: não bastasse o diferencial, ela vestia-se como se estivesse em casa, à vontade, com uma leve displicência. No fim, isso dava um toque de simpatia à figura, algo beirando à elegância, ou melhor, ao charme.
Na semana seguinte, ele a reparou de novo. E não por acaso. Descobriu que eles pegavam o ônibus na mesma parada. Ela apenas chegava em cima da hora, quase junto com a condução. Aliás, neste dia ela teve, inclusive, que correr para alcança-lo. Ele, um típico virginiano (e essa informação é importante que guardemos), achou curioso. Mas não chegou a estranhar; combinava com a charmosa displicência do visual. Como na semana anterior, ela estava à vontade, mas, ainda assim, um pouco mais "arrumada". Observa-la foi ficando mais interessante, e até mais excitante. A simpatia que via nela já se transformara em uma leve sensualidade. Até que, em determinada altura do trajeto, seus olhares se cruzaram; a cena durou poucos milésimos, mas o suficiente para que ambos desviassem o olhar com um pequeno constrangimento. Novamente, ele olhou na direção dela: novo contato. Pronto: agora havia uma ligação. Na mesma viagem, nasceu a paquera.
Como bom observador (lembremos que ele era virginiano), nosso camarada percebeu que ela cursava Engenharia de Alimentos. Estava escrito em sua pasta. Além disso, quando chegavam no campus universitário, ele a via entrar em um Centro Não-Sei-o-Quê de Engenharia de Alimentos. Isso mesmo, os dois iam para o mesmo lugar. Não preciso dizer que a idéia de que os dois pegavam o mesmo ônibus no mesmo local e ainda desciam juntos lhe pareceu divertidíssima. Imaginou como seria contar isso anos depois para os seus netos. Mas não nos apressemos. Havia muitos passos a serem dados até esse nível, e nosso amigo era metódico (virginiano!).
A esta altura dos acontecimentos, ambos já tinham se traído: os dois estavam interessados. Porém, talvez devido a alguma regra social infame, ele se sentiu na obrigação de dar o próximo passo. Mas não o fez. "Na próxima parada, eu falo com ela". "Já sei! Vou esperar que aquela senhora saia do seu lado. Então, eu vou e falo com ela." As paradas passavam e as senhoras saíam... mas ele não falava. Isso se repetiu por, pelo menos, mais duas semanas. No final do trajeto, ele pensava: "Sou um bunda mole!" Soltava um suspiro de resignação e ia tomar um café no bar antes que a aula começasse.
Em determinado momento desse relacionamento (platônico?), ele lembrou do ditado: "A melhor maneira de conhecer alguém é mexer no seu lixo." Sorriu e imaginou o que encontraria na lixeira de uma engenheira de alimentos. Cascas de banana, canetas e filtros de café... achou também que não seria difícil descobrir onde ela morava: ele era obstinado e sabia onde ela pegava o ônibus. Mais algumas semanas, e teria um verdadeiro dossiê sobre aquela menina que há algum tempo era uma ilustre desconhecida para ele. Mas, naquele dia foi diferente. Seus olhares os levaram a um beco sem saída, alguém teria de dizer algo. Não era possível que duas pessoas se olhassem tanto e não trocassem nenhuma palavra! Ele pensou consigo: "Chegamos ao limite... na semana que vem, eu falo com ela!"
Na semana seguinte, enquanto esperava o ônibus, pensava em uma maneira interessante de aborda-la. De preferência algum assunto que não fosse da linha "que tempo maluco, não?" No entanto, ele começou a ficar nervoso: ela não aparecia nunca! O ônibus já estava chegando à parada, e nada da engenheira de alimentos aparecer. A dúvida pairava em sua mente obscura: "Vou ou espero?" Pensou que ela poderia ter se organizado melhor dessa vez, afinal, seria o dia de sua primeira conversa.
O ônibus parou, as portas se abriram. Ele, corroído pela dúvida e pela aflição, foi o último a entrar... mas entrou. Entrou e falou baixinho, para si mesmo: "Sou um bunda mole!" Dito isso, ergueu a cabeça e viu a menina na metade da quadra, vindo em direção à parada. O ônibus arrancou. Ele ainda cogitou simular um ataque epilético para que ela tivesse tempo de alcançar o coletivo... mas não. "Definitivamente, sou um bunda mole", pensou. "Mas de semana que vem não passa!"
Na outra semana, ele esperou até o último instante. Diria para ela algo espirituoso, algo do tipo: "Perdeste o ônibus semana passada, heim..." Mas ela não apareceu, e ele entrou no ônibus. Pensou que ela poderia estar pegando o ônibus anterior ou o ônibus seguinte ao que sempre pegavam. Refletiu. Definitivamente, ela estava pegando o ônibus seguinte, era um tanto desorganizada para pegar o ônibus anterior. Nas semanas consecutivas, eles não voltaram a se ver. Ele, claro, começou a tecer considerações que diminuíssem seu sentimento de "bunda-molismo": "Ela andava muito à vontade e chegava em cima da hora para pegar o ônibus. Um pouquinho desorganizada. Nunca teria dado certo..."
Ela, uma engenheira de alimentos; ele, um virginiano...

Dizem que, quando chegamos em uma certa idade, começamos a agir de uma forma estranha, começamos a rever a vida e a querer fazer tudo o que não fizemos antes. Foi algo assim o que aconteceu com o Leão naquela primavera. Estava cansado de ser o Rei das Selvas. A Coroa não era mais tão divertida, e o glamour estava mais nos filmes do que na vida real.
Após muito refletir, decidiu-se enfim: criou o ano eleitoral na floresta. A idéia de eleição provavelmente foi fruto da leitura de livros franceses que existiam na Biblioteca Central da selva. Bom, fato é que, em princípio, a notícia caiu como napalm na selva. Houve uma confusão inicial - certamente, causada pelos boatos espalhados pelas Caturritas, que diziam que era tudo um teste de fidelidade para a Corte.
Mas não tardou muito, e os partidos começaram a se formar: conservadores, progressistas, radicais... os democratas-cristãos e os ecológicos, claro, não poderiam faltar. Houve até rumores de um possível golpe de Estado movido pelos anarquistas, mas, como eles não se organizaram, tudo tomou seu curso normal.
As notícias voam - que o digam as Caturritas -, e logo os animais das fazendas da região ficaram sabendo da corrida eleitoral. O Asno, que não era nenhum burro, viu nisso uma ótima oportunidade de fazer seu pé-de-meia: pegou a família e partiu para a floresta grande. Ofereceria seus serviços de transporte de campanha.
Multipartidarismo à parte, dois eram os principais candidatos: a Raposa e a Cobra. Por motivos naturais, eram os que mais entendiam de política. Os Coelhos, que eventualmente passavam pelo lugar, em poucos dias, transformaram-se no eleitorado mais numeroso. Mas, como é sabido, Raposas, Cobras e Coelhos não têm uma história muito amigável. Bom para as Corujas, que, há tempo, já eram referência na área de marketing político.
A Preguiça, por motivos nunca compreendidos, também resolveu lançar sua candidatura. Como uma espécie de terceira via, sua chapa seria: "Tranqüilidade para a Floresta". Apostava no slogan: "Não ao Capitalismo Selvagem". No entanto, sua vitória era improvável. Só venceria se desse uma grande zebra, pois sua campanha andava muito devagar.
Em poucos dias, placas eleitorais já tomavam conta de 90% das árvores da selva, e até alguns outdoors surgiram, da mesma forma que os trabalhos temporários - principalmente para os Macacos-Pregos. Porém, os animais, de uma forma geral, estavam descontentes: desde que começara a campanha, os serviços básicos pareciam ter sido esquecidos.
Mas o descontentamento durou pouco: o trabalho das Corujas era realmente muito bom. Por um conselho delas, a Raposa começou a construção de uma grande estrada que ligaria os extremos da floresta. Seria a civilização chegando ao lugar? Ponto para ela (a Raposa).
Por outro lado, a Cobra aparecia de hora em hora comendo folhas e frutas em rede nacional, ou melhor, rede florestal. Certamente, diziam os linguarudos dos Tamanduás, era uma jogada para atrair os votos dos Coelhos indecisos. Claro que estes caíram feito patinhos.
Mas a verdade é que a floresta estava dividida e, nos bares, os Gambás brigavam a todo momento. Foi quando uma comitiva da Raposa entrou em contato com o pessoal de campanha da Cobra.
Reunião a portas fechadas.
Naquela noite, a Cobra retirou a sua candidatura. A Preguiça, muito influenciável, achou que era uma boa idéia e fez o mesmo. As urnas, obviamente, escolheram a Raposa como a grande vencedora. O Leão, já cansado de tudo, nem passou a coroa para a sua sucessora e viajou para a França. Dizem à boca pequena que virou doutor e que está dando aulas em uma famosa universidade de lá.
Hoje, meses após a eleição, sabe-se o motivo daquela reunião entre as equipes da Cobra e da Raposa: foi feito um "acordão". Com a Raposa no trono, a Cobra recebeu a mais importante pasta ministerial: a Casa Florestal. Também se falou na possibilidade de garantia da vitória da Cobra nas próximas eleições.
Mas é possível que as coisas não sejam bem assim, pois, nas últimas semanas, a Raposa não pára de falar em reeleição...

Mãos Dadas

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Carlos Drummond de Andrade



Há alguns anos, criei um blog. Como eu esperava, chegou um momento em que não tive mais vontade de escrever... passou o tempo, e, quando quis voltar a utilizá-lo, deparei-me com a dura realidade: teria de pagar para acessá-lo novamente... pelo visto, não tinha tanta vontade de reativá-lo assim...
Bom, fato é que, agora, crio um novo blog para o caso de pensar em algo que valha a pena ser dito [ou, enfim, escrito]... seguindo o conselho do Sandro, coloco na seqüência - ao melhor estilo mito do eterno retorno - textos do meu finado blog. são alguns textos que não gostaria de perder de vista. Alguns talvez não me expressem mais tanto quando o faziam na época, mas, enfim... registros históricos são [sempre] selecionados por algum motivo...

No mais, abro este blog com Carlos Drummond de Andrade. E vamos ser gauches na vida...